quarta-feira, 19 de outubro de 2011

População brasileira

O Brasil detém a quinta maior população do mundo.
Conforme dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população total do Brasil é de 190.755.799 habitantes. Esse elevado contingente populacional coloca o país entre os mais populosos do mundo. O Brasil ocupa hoje o quinto lugar dentre os mais populosos, sendo superado somente pela China (1,3 bilhão), Índia (1,1 bilhão), Estados Unidos (314 milhões) e Indonésia (229 milhões).

A população brasileira está irregularmente distribuída no território, pois há regiões densamente povoadas e outras com baixa densidade demográfica. A população brasileira se estabelece de forma concentrada na Região Sudeste, com 80.364.410 habitantes; o Nordeste abriga 53.081.950 habitantes; e o Sul acolhe cerca de 27,3 milhões. As regiões menos povoadas são: a Região Norte, com 15.864.454; e o Centro-Oeste com pouco mais de 14 milhões de habitantes.

A irregularidade na distribuição da população fica evidente quando alguns dados populacionais de regiões ou estados são analisados. Somente o estado de São Paulo concentra cerca de 41,2 milhões de habitantes, sendo superior ao contingente populacional das regiões Centro-Oeste e Norte juntas.

A população brasileira está distribuída em um extenso território, com 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Em virtude disso, a população relativa é modesta, com cerca de 22,4 hab./Km². O dado apresentado classifica o país como pouco povoado, apesar de ser populoso diante do número da população absoluta.

O Sudeste é a região mais populosa do país por ter ingressado primeiramente no processo de industrialização, e hoje se encontra desenvolvida economicamente e industrialmente. O surgimento da indústria no Sudeste foi primordial para a urbanização e a concentração populacional na região, pois ela se tornou uma área de atração para trabalhadores de diversos pontos do país.

Em relação à densidade demográfica, a Região Sul ocupa o segundo lugar. As causas dessa concentração se devem principalmente pelo fato de a região ser composta por apenas três estados e pela riqueza contida neles, que proporciona um elevado índice de urbanização.

O Nordeste é a segunda região mais populosa, no entanto, a densidade demográfica é baixa, proveniente da migração ocorrida para outros pontos do Brasil, ocasionada pelas crises socioeconômicas comuns nessa parte do país.

O Centro-Oeste ocupa o quarto lugar quando se trata de população relativa. Isso é provocado pelo tipo de atividade econômica que está vinculada à agropecuária e que requer pouca mão de obra.
 
Por Eduardo de Freitas
Graduado em Geografia

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Notas sobre a geografia crítica

Ora, quando é que todos nós vamos arregaçar as mangas, deixarmos de preguiça e fazermos uma geografia que realmente sirva para alguma coisa?

Eu nunca estudaria 4 anos e meio e trabalharia em algo que fosse inútil, meras descrições, estatísticas ou informações apenas.. ora... vamos pensar pessoal.

Este mundo ainda é a nossa única casa e prisão, para que nos preocuparmos com coisas fúteis?

Enquanto uns se ocupam em pensar, planejar, propor soluções de problemas inerentes a nossa ciência, outros se ocupam de serem meros operadores de máquinas modernas, coletadores de dados e produtores de mapas.

Onde está a crítica do espaço neste processo?

Não confundam o instrumental com geografia.

E alguns aqui ainda chamam isto de geografia crítica.. ora tenham paciência.

“A verdade, porém, é que tudo está sujeito à lei do movimento e da renovação, inclusive as ciências. O novo não se inventa, descobre-se.” (Milton Santos)

“O capital traz como sua condição necessária a subversão da geografia pré-capitalista, porque o capitalismo nasce e se expande subvertendo a “relação homem-meio”, que não é outra coisa que o processo de trabalho dito de forma empírica.” (RUY MOREIRA)

“Espaço e trabalho são a forma e a essência da Geografia, espaço e trabalho estão em uma relação de aparência e essência, assim, “o espaço geográfico é a aparência de que o processo historicamente concreto do trabalho (a relação homem-meio concreta) é a essência.”( RUY MOREIRA)

“o espaço é a sociedade pelo simples fato de que é a história dos homens produzindo e reproduzindo sua existência por intermédio do processo de trabalho.”(RUY MOREIRA)

Ora, se a "Geografia Crítica" não se ocupar de estudar a perversidade sistêmica em que estamos inseridos e a transformação espacial onde a história da humanidade confunde-se com a do espaço, não deve receber esta nomeclatura.

Onde está a crítica do espaço neste processo?

Não ao POSITIVISTO!

Não a NEUTRALIDADE!

Sejamos ATIVOS E DINÂMICOS assim como o espaço geográfico.

Luciano Costa

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES: LINGUAGENS DE EXPLORAÇÃO E DE ACOMODAÇÃO ENTRE BOXEADORES PROFISSIONAIS

O boxe oferece um prisma singular por intermédio do qual é possível chegar
a uma compreensão das possibilidades estruturadas, percepções culturais
e trajetórias individuais no interior dos bairros pobres e decadentes
dos Estados Unidos. A sua natureza como atividade em que o corpo é
radicalmente instrumentalizado, as suas ligações com a economia informal
das ruas, o re c rutamento social e etnorracial de seus praticantes, as
motivações e disposições que re q u e r, fazem do boxe a prototípica instituição
masculina do gueto. De fato, a história moderna do pugilismo nos
Estados Unidos é inseparável daquela das relações raciais e também das
periódicas reconfigurações da fronteira de cor na área urbana desse país
(Sammons 1988). O boxe é também um terreno part i c u l a rmente pro p í c i o
para dissecar a experiência vivida e a construção simbólica da exploração
na parte mais baixa da estrutura de classe e de casta.
O presente artigo baseia-se em 35 meses de trabalho de campo etnográfico
e aprendizagem em uma academia de boxe situada no gueto
negro de Chicago, buscando explicar como os lutadores profissionais percebem
e expressam o fato brutal de serem mercadorias vivas feitas de carne
e sangue, e como eles se reconciliam praticamente com a fero c i d a d e
da exploração de uma maneira que lhes permite pre s e rvar um senso de
integridade pessoal e finalidade moral. Desse modo, procura contribuir
simultaneamente para a antropologia das culturas das classes trabalhadoras
e para a etnossociologia do corpo, da economia e da moralidade1.
Uma noção que costuma ser usada por críticos do boxe pro f i s s i o n a l
para explicar a persistência desse esporte é a de que os lutadores são ingênuos,
crédulos, equivocados ou mal-informados a respeito da verd a d e i r a
n a t u reza de sua ocupação — em suma, simples marionetes (ou bobos*)
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES:
LINGUAGENS DE EXPLORAÇÃO
E DE ACOMODAÇÃO ENTRE
BOXEADORES PROFISSIONAIS*
Loïc Wa c q u a n t
Mana 6(2):127-146, 2000
* No original, “dupes (or d o p e s)” em referência, segundo o autor, à noção de “cultural dopes”, de
Harold Garfinkel (N. do T.).
1 2 8 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
nesse “show business s a n g rento” ao qual dedicam bons pedaços de suas
vidas e de seus corpos. Na verdade, porém, longe de acalentar quaisquer
ilusões, os boxeadores profissionais são extremamente conscientes quanto
ao fato de terem entrado em um universo de exploração desenfre a d a
em que a mentira, a manipulação, o ocultamento dos fatos e os maus-tratos
são a regra, e em que os danos ao corpo e o desmantelo da vida pessoal
são conseqüências normais do ofício. Um dos membros da academia
de boxe no South Side de Chicago onde fui aprendiz durante cerca de
três anos descreve da seguinte forma as relações entre os que fazem parte
do mundo dos ringues: “Todo mundo tenta pisar em todo mundo, todo
mundo tenta machucar todo mundo, e ninguém confia em ninguém”. As
p rovas tangíveis dos estragos corporais e da aflição pessoal que decorrem
da profissão são muito visíveis para os boxeadores, como diz um
peso-médio negro do West Side de Chicago: “Só o que você tem que fazer
é dar um pulo nas academias e dar uma olhada: tem um monte de caras,
suas pernas estão acabadas, sacou, eles só ficam por ali sem fazer nada.
Você pensa na carreira deles, quando eles estavam subindo eles estavam
até bem, mas depois, t c h u ff (triste), eles não têm nada para lhes dar um
apoio, é mau”.
Os lutadores são unânimes em afirmar que esse jogo está cheio de
“ e m p resários ladrões” (“tem um monte deles, daqueles que estão a fim
de fazer uma grana rápida”), e consideram axiomático que os empre s ários
e org a n i z a d o res de lutas são “merc a d o res de carne” que não hesitarão
em mandá-los “lutar com o King Kong por dez centavos” se isso lhes
p a recer lucrativo2. “Se você é um lutador, e principalmente se você não
tem g e nte graúda do seu lado”, explica um peso-leve afro - a m e r i c a n o
que trabalha ocasionalmente como eletricista, após um breve período
como fuzileiro naval, “é como se você estivesse em uma p i sc ina com um
monte de tubarões, sabe como é, e eles todos ali [fazendo como quem
está se deliciando], ‘você é bem suculento, vou tirar um naco da sua bunda!’”.
Um jovem peso meio-pesado porto-riquenho, por sua vez, que trabalha
à noite como segurança, faz esta reveladora observação: “Q u e m
anda por aí com sapatos de couro são eles, não nós, então [...] porq u e
se você é empresário, nunca vai levar um soco, a menos que você seja
um empresário muito ruim mesmo. E você ganha dinheiro sem ter que
dar duro ” .
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 2 9
Idiomas de exploração corporal
A consciência que o boxeador tem da exploração é expressa através de
três idiomas aparentados: o da prostituição, o da escravidão e o da criação
animal. O primeiro aproxima a dupla lutador-empresário daquela formada
pela prostituta e pelo cafetão; o segundo retrata o ringue como uma
p l a nt at i o n e os empresários como senhores de escravos e feitores contemporâneos;
o terc e i ro sugere que os boxeadores são tratados como
cachorros, porcos, garanhões e outros animais domésticos de valor comercial.
Todos os três tropos, simultaneamente, enunciam e denunciam a
comercialização imoral, ou antes desumana, de corpos vivos e ativos.
De acordo com a primeira linguagem, o cafetão e o empre s á r i o
teriam em comum o fato de que, com o pretexto de promover o intere s s e
f i n a n c e i ro e proteger a integridade física (ou emocional) dos seus re s p e ctivos
parceiros, na verdade usam e abusam deles em uma impiedosa busca
de lucro. Do mesmo modo que a prostituta oferece nas ruas, por dinheiro,
a capacidade de p e rf o rm a nc e sexual de seu corpo feminino, o lutador
vende a varejo a capacidade, resultante de treinamento, que tem o seu
corpo masculino de causar e suportar abusos físicos entre as cordas do
ringue. Os empresários e patro c i n a d o res, por sua vez, ficam do lado de
fora e colhem o grosso do dinheiro gerado por esse comércio de carn e
m a s c u l i n a3. Um veterano dos ringues, já mais velho, que atravessou a
E u ropa continental várias vezes atuando como “oponente” diante dos
lutadores locais4, formula isso de uma maneira aguda:
“ Todos os boxeadores são uns fodidos, como se diz. É um jeito de falar, né?
Sa-be como é, os empresários são uns cafetões, sacou? E os boxeadores são
iguais às putas, sacou, então os caras dão uma de alcoviteiro. É isso aí, com
c e rteza. Eles não estão nem aí com o lutador, sacou? Eles só querem curt i r, e
a curtição é a grana. [com tristeza, mas sem surpresa] Eles só se import a m
com o dinheiro”.
Um colega mais novo da academia no West Side, que abandonou
um bom emprego como instalador de TV a cabo em uma cidade-satélite
e mudou-se para Chicago para seguir carreira em tempo integral como
b o x e a d o r, com apoio financeiro do novo dono do ginásio, também concorda
com essa visão:
“Com certeza, tem um monte de empresários que a gente pode dizer que
são uns cafetões: eles gostam de agenciar um lutador, saca? Eles levam os
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caras por aí e jogam eles prá qualquer um, só pela grana, e ficam com quase
toda a grana. Deixam o lutador sem um tostão ou com o mínimo prá sobre v iver.
Tem um monte de empresários desse tipo, que só usam os caras, do mesmo
jeito que um cafetão usa uma puta, igualzinho. [com escárnio] Tem um
monte de empresários que não passam de alcoviteiros. Eles ficam atrás de
qualquer lutador só prá conseguir ganhar uns trocados em cima dele, não
estão nem aí com a saúde do cara nem nada”.
O segundo idioma em que se expressa essa visceral consciência de
exploração e subordinação a ditames exteriores vai ser buscado na experiência
histórica da escravidão. Por motivos óbvios, as analogias com essa
instituição de trabalho forçado e de “alienação natal” (Patterson 1982)
possuem uma ressonância singular e uma forte carga emocional para os
b o x e a d o res afro-americanos. Um amigo meu da academia, um de meus
p a rc e i ros re g u l a res de treinamento, chamado Ashante, era na época um
jovem peso meio-médio em ascensão, com uma longa lista de empre g o s
abandonados na bagagem. Ele relata uma luta part i c u l a rmente bru t a l
que o despertou para a desigualdade econômica inerente ao boxe:
“Se você vai lá e está tendo uma bela duma luta dura, cara, dê valor a esse
cara. Eu vi o Highmower lutar com esse garoto, cara, cara! [riso nervoso] Daí
em diante eu comecei a odiar as lutas, a odiar o boxe, sério mesmo. Porq u e ,
sabe Louie [exasperado], Highmower e aquele garoto quase se mataram.
Cara, a torcida ficou doida, e Ralph [o empresário] […] eu falava, eu falava,
‘mas que merda é essa?!’ Cara, é a escravidão de novo. Quer dizer, olha só
que merda! Esses caras estão se matando de verdade por [abaixando a voz e
s u s s u rrando incrédulo e enojado], por cem dólares [...] [enfatizando cada
palavra para dramatizar seu argumento] Highmower deu um direto, o outro
cara deu um direto, os dois caíram, três ou quatro vezes cada. Os dois foram
parar no hospital, para ganhar o que, duzentos dólares, cem cada um? Eu
disse [balançando a cabeça vigorosamente]: ‘Não, isso não está certo’”.
Ao expressar sua firme oposição à regulação do ofício pelo govern o ,
o presidente de uma das maiores assim chamadas “federações” que sancionam
os campeonatos mundiais5 (trata-se de um ex-lutador afro - a m e r icano
que entrevistei em Atlantic City no início da década de 90) arg u m e ntou
que isso iria “destruir o boxe”, porém reconheceu que existem de fato
“[...] alguns empresários que querem ir pelo mau caminho, querem levar
vantagem ou se aproveitar do cara, que não querem ir para a luta final [pelo
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 3 1
título do campeonato] por terem medo de uma derrota do seu lutador. Ou
que querem amarrar um lutador para sempre com contratos de cinco ou seis
lutas. A escravidão acabou com Lincoln e eles querem que alguns desses
lutadores sejam escravos, e isso não é bom.”
A terceira linguagem de exploração entre os boxeadores evoca metáforas
de animais e da agropecuária, rebaixando os boxeadores a bestas
a serem criadas, alimentadas e mostradas — ou mesmo devoradas com
c rueldade canibal — de acordo com a vontade daqueles que contro l a m
as alavancas financeiras do jogo. Certa noite, enquanto me mostrava os
vários lugares perto de seu apartamento que serviam para a venda de
d rogas ao ar livre, Luke abruptamente iniciou uma fala irada a re s p e i t o
do emaranhado de disputas entre seu tre i n a d o r, seu empresário, e Ralph,
o empresário branco que exerce um quase-monopólio sobre a economia
do boxe da cidade. Ele estava part i c u l a rmente ressentido com o fato de
que seu treinador havia se aliado a Ralph quando este, traiçoeiramente,
fez arranjos para evitar que Luke conseguisse lutar fora da cidade,
ganhando mais:
“Sabe como é, eles querem que eu lute quando o Ralph quer que eu lute. É
como, é como [...] é como se eu fosse um cavalo numa cocheira, eu me levanto
toda manhã, o meu treinador me leva para me exerc i t a r, eles me lavam,
me dão comida. E me colocam de volta, colocam de volta na cocheira, e aí o
Ralph vem e diz [com um tom exageradamente jovial]: ‘E aí, como é que
vai?’. Aí ele, sabe como é, no escritório [com uma voz melosa, imitando o jeito
de falar dos brancos]: ‘Como vai aquele garanhão negro?’ Aí, sabe como
é: ‘Ele vai bem’. E aí eles pegam alguns dos caras que vão lutar, me deixam
na minha cocheira, e eu continuo correndo e continuo treinando, certo? Aí
ele vem e diz [com seriedade]: ‘Não vou deixar ele lutar nunca’”.
Relações de exploração não se limitam àquelas que unem lutadore s
a empresários. Elas podem se difundir, capilarmente, nas relações envolvendo
tre i n a d o res, companheiros de academia e rivais, e o conjunto de
personagens que acompanham os boxeadores como um séquito e que o
j a rgão identifica como “ratos de academia” (“gym rats”). Phonzo é um
lutador solitário que nunca reclama de nada (“eu nunca penso no lado
negativo das coisas, as pessoas não me amolam, ninguém me amola. Nem
você me amola, n i nguém mesmo”) e que alcançou um sucesso pouco
comum no “círculo quadrado” dos ringues: ele é um dos poucos lutadores
de Chicago que conquistaram algum título mundial nas últimas duas
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décadas. No entanto, quando um dia conversamos a respeito da melhoria
de sua situação econômica e de sua carreira, sentados no salão dos fundos
da academia, tudo nele, desde sua postura, jeito de corpo, tom de
voz, até o olhar, revelava-o cheio de amargura. Depois de longos anos de
“sacrifício”, seguindo as regras do ascético regime do boxeador, corre ndo
e treinando todos os dias, alimentando-se de acordo com dietas assassinas,
e restringindo sua vida social e sexual, ele finalmente conseguiu
colocar o cinto de campeão6. Mas aquilo que deveria ter sido a apoteose
de sua vida profissional e motivo de exaltação pessoal acabou se torn a ndo
um momento vazio e sem alegria.
“P h o n z o: Você acaba descobrindo que através das finanças e do dinheiro —
e o dinheiro é poder aqui na América — então, já que dinheiro é poder, o
d i n h e i ro pode trazer muitos inimigos, e também pode fazer surgir um monte
de falsos amigos. [visivelmente transtornado com a lembrança] Então, hmm,
eu achei que tinha amigos, ainda hoje [...]. Mas quando a situação de dinheiro
começou a ficar mais decente [sua voz e olhar tornam-se frios] esses amigos
viraram urubus. E quando um amigo vira urubu, ele vai bicando até deixar
você só no osso. Eles te usam, se aproveitam de você, te abusam, como
se você fosse um porco ou qualquer coisa assim. Eles te comem vivo. Então,
quando cheguei a essa situação, eu não estava mais com as pessoas que
começaram comigo, eu era uma pessoa muito infeliz. Quando ganhei o campeonato,
não ganhei junto daquelas pessoas em quem eu confiava. E aqueles
em que você confia às vezes vão contra você, sabe? Então, ganhar o campeonato
foi uma satisfação, mas não foi a mesma coisa.
L o u i e: O fato de não estar com as pessoas com quem você queria estar acabou
com a sua alegria?
Phonzo: Isso, acabou com a minha alegria.
Louie: E você se arrepende disso?
P h o n z o: Eu não me arrependo de nada na vida. Só Deus sabe tudo o que
acontece na vida, e por que acontece [...]. O que acontece é que quando as
pessoas passam a te olhar como se você fosse um sabonete e não um ser
humano, elas perdem o respeito por você. E quando elas perdem o re s p e i t o
por você, você perde o respeito por elas. E quando têm duas pessoas trabalhando
juntas sem ter respeito uma pela outra, o esquema de trabalho não
vai ser bom. Ou [...] a situação de trabalho não é legal [muito tenso e rápido,
a m a rgo, sem pausa para respirar]. Porque todo mundo tenta pisar em todo
mundo e todo mundo tenta machucar todo mundo e ninguém confia em ninguém,
e quando a situação é esta [grave e gutural] é o caos, e quando é o
caos, num jogo como o boxe, é um problema, são problemas demais para a
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 3 3
gente lidar com eles. Então foi isso [...] eu não reclamo: fico feliz porque saí
do jogo, porque saí sem ficar com orelhas de couve-flor, tenho todos os dentes
ainda na minha boca, não quebrei as costelas — a única coisa que eu
quebrei várias vezes foram minhas mãos, de tão forte que eu batia”.
Essas três linguagens de exploração não são de modo algum incompatíveis
entre si, e na verdade os boxeadores costumam combiná-las de
várias maneiras. Dave “TNT” Tiberi, um peso-médio de Delaware, em
seu depoimento no Inquérito sobre a Corrupção no Boxe Profissional promovido
pelo Senado americano no verão de 1992, depois do grande destaque
dado pela mídia a uma decisão escandalosamente parcial que o
privou do título nacional em uma luta televisionada para o país inteiro ,
desenvolveu um pouco mais a metáfora da antropofagia ao declarar, para
a surpresa dos senadores, que “a maioria dos lutadores, dependendo do
seu talento, é vista pelos empresários como filé, outros como costelinhas
de porco, e os menos talentosos como carne moída*, mas é raro que sejam
reconhecidos como seres humanos”. Ao explicar que a Intern a t i o n a l
Boxing Federation havia permitido que ele concorresse ao título com o
campeão James Toney só depois que ele renunciou ao seu próprio título
junto à organização rival International Boxing Council e assinou um contrato
de três lutas com o empresário de To n e y, Tiberi muda de re g i s t ro :
“Lembrando daquelas circunstâncias, era como estar sendo comprado
em um leilão de escravos [...] às vezes eu acho difícil considerar o boxe
um esporte. Para muitos empresários, virou um tráfico de escravos privado
e legalizado” (U.S. Senate 1992:10, 11). A subseqüente deposição de
James Pritchard, o campeão intercontinental da categoria peso-cru z a d o r
da IBF, acrescenta um toque vampiresco à imagem aterrorizante de que
o sangue vital dos lutadores está sendo sugado para ser consumido por
parasitas em busca de lucro. Pritchard trabalhou para três empresários, e
os três foram por ele caracterizados como “sanguessugas”: “Do mesmo
jeito que um mosquito, ele te pica e suga o teu sangue. É isso que eles
fazem. Quando eles se grudam em você, eles sugam tudo o que podem”
(U.S. Senate 1992:30). Sangue sugado, carne bicada, ossos descarn a d o s ,
vitalidade esgotada e roubada: essas expressões refletem vividamente a
p e rcepção visceral dos boxeadores de que são uma mercadoria corporal
desvalorizada e em perigo7.
* No original, p r ime ribs (cuja tradução mais literal seria rosbife), pork chops e s c r a pp l e (este último
é uma espécie de bolo de carne prensada feito com carne de segunda e fubá) (N. do T.).
1 3 4 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
Integridade através da acomodação
A grande maioria dos lutadores profissionais — 88% dos praticantes desse
ofício em Illinois em 1991 — considera que os seus serviços são extremamente
malremunerados e afirma com bastante vigor que recebe apenas
“uns trocados” ou “umas migalhas”. 86% deles consideram que uma
“ remuneração justa” teria que ser igual ou maior do que 100 dólares por
ro u n d, que é o dobro da remuneração normal em Chicago na época (ver
Tabela 1). Quando perguntei a um peso meio-médio negro desempre g ado
que estava há quatro anos no ofício se ele achava que os pugilistas da
cidade recebiam uma “remuneração justa” por seu trabalho, ele re s p o ndeu,
mal contendo a sua raiva:
“Recebem nada! Nada disso, eles estão sendo enganados, estão sendo ro ubados,
e lutar boxe em Chicago, prá mim, essa é minha opinião pessoal, os
b o x e a d o res em Chicago [muito alto] estão sendo abusados e usados, e nunca
teve justiça para eles em Chicago, sacou? Porque os caras ganham mal,
t reinam demais e nunca conseguem fazer o que precisam fazer no boxe porque
ninguém está nem aí com eles”.
Tabela 1 — O que os boxeadores consideram uma “remuneração justa”
para uma luta de seis ro u n d s (os valores efetivamente pagos estão entre
200 e 300 dólare s )
No de boxeadores %
< 500 dólares 5 11
500 dólares 6 13
600-800 dólares 20 45
> 1.000 dólares 14 31
Total 45 100
Fonte: Levantamento feito pelo autor junto aos lutadores profissionais de
I l l inois, 1991.
Porém, ainda que expressem a consciência da exploração de modo
exaltado e muitas vezes com dor, é raro que se levantem para denunciar
a grande injustiça de sua situação econômica. Ao contrário, em seu cotidiano
de trabalho reconciliam-se na prática com a perspectiva evidente,
senão a realidade, de se torn a rem mercadorias carnais a serem compradas,
vendidas e trocadas. Há três “vocabulários de motivos” (Mills 1940)
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 3 5
que lhes permitem realizar essa acomodação e construir um senso de
integridade pessoal e profissional, no sentido de “se re s p o n s a b i l i z a re m
pelo seu próprio projeto de vida, dentro dos limites e pressões impostos
pelas restrições estruturais, e de acordo com concepções consistentes a
respeito da maneira correta de se viver, em parceria com os outros”8.
O primeiro vocabulário afirma simplesmente que a exploração faz
necessariamente parte da vida, é um datum brutum da existência comum
das pessoas comuns, com o qual temos que lidar da melhor maneira possível.
A força de persuasão desse vocabulário tem uma origem óbvia: a
exploração econômica é de fato uma constante nas regiões mais baixas
do espaço social americano, onde vivem os boxeadores e seus associados.
O que pode variar são suas formas fenomênicas, sua intensidade e
seus beneficiários9. Visto deste ângulo, o boxe difere pouco dos outro s
jogos sociais aos quais os jovens proletários dos bairros pobres e decadentes
têm acesso, uma vez que o sistema falido de escolas públicas só
o f e rece oportunidades inviáveis e o mercado de trabalho não-qualificado,
inchado com mão-de-obra barata, a longo prazo só acena com marg inalidade
(McLeod 1994; Holzer 1996). Como observa sucintamente
Butch, meu companheiro de academia, bombeiro e pugilista com mais de
uma década de experiência nos ringues:
“Se existe uma classe de pessoas pobres, que não tem nada, sem estudo, o
m e rcado de trabalho vai mal, e aí aparece um cara e diz: ‘eu dou 150 dólares
para vocês lutarem’, como é que alguém vai dizer não? Eles se apro v e itam
da sua situação. Se o cara tivesse dinheiro no bolso e um emprego o cara
não ia conseguir convencer ele a lutar. Então é claro, os caras que vêm de
uma origem pobre são uns puta lutadores, porque eles lutam porque não têm
mais nada. E quando eles aprendem a ganhar dinheiro, bater e machucar os
o u t ros acaba sendo um dinheiro fácil, e eles continuam fazendo isso até não
poderem mais, até eles virarem dinheiro fácil para alguma outra pessoa”.
De modo bastante semelhante ao que ocorre na economia inform a l
do gueto, com a qual a economia pugilística se mistura e funde em muitos
pontos de junção, é necessário aceitar os riscos quando se espera conseguir
algum lucro. O mesmo peso-galo afro-americano que censura o fato
de que os empresários “tratam os boxeadores como uns cachorros, tratam
eles exatamente como se fossem cachorros”, aproxima-os na mesma frase
aos malandros que, como ele, empregam a sua esperteza e vivacidade
no capitalismo de butim das ruas. “Isso é que nem fazer o que eu faço:
ganhar uma grana na malandragem”1 0. Afinal, não seria a própria vida
1 3 6 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
uma espécie de loteria? Um peso meio-médio mexicano que afirma estar
bem consciente dos abusos que rotineiramente os empresários cometem,
e que no entanto assinou recentemente um contrato de longo prazo com
uma das quatro maiores agências da região, esclarece: “Você a s s ume um
risco, mas você também assume um risco quando anda na rua, sabe, você
pode ser atropelado por um carro, ou pode ser assaltado quando vai levar
sua mulher para um piquenique, ou qualquer coisa assim”. Em condições
de incerteza generalizada, em lugar de ficarem ressentidos com os
e m p resários, alguns boxeadores se sentem gratos pela oportunidade que
estes lhes oferecem de fazer suas apostas nessa estranha l o t eria de corpos
habilidosos que é o boxe. É esta a opinião de Surly, um peso-pesado
que consegue empregos intermitentes e mora em um dos conjuntos habitacionais
públicos mais perigosos do West Side de Chicago:
“Acho que muitos deles, se não estivessem aqui, sabe, não teriam nenhuma
chance, né? A gente precisa se arr i s c a r. [com arrogância] Tudo tem um risco.
Se você joga dados, você pode ganhar ou perd e r. O boxe é como o jogo, em
c e rto sentido. Sabe como é, também precisa ter uma certa habilidade, mesmo
sendo um jogo você também tem que saber o que você está fazendo”.
Além disso, dada a detestável reputação do mundo dos boxeadore s ,
ninguém pode afirmar de maneira convincente que foi realmente enganado:
todos os participantes sabem muito bem que o boxe é como um tanque
cheio de tubarões onde quem não devora os outros vai acabar mais
cedo ou mais tarde virando refeição (Wacquant 1998a). Entrar na economia
do pugilismo pressupõe, portanto, ab initio a aceitação, tácita ou
explícita, de uma posição subordinada ou explorada. Martin, um pesoc
ruzador negro que lutou como profissional durante nove anos ao mesmo
tempo que ascendia profissionalmente de leitor de medidores para um
trabalho de escritório no departamento de atendimento ao cliente em
uma grande empresa, reflete:
“Eu sabia que uma coisa que eu queria na vida era lutar. Se eu já decidi ser
um lutador, e chega um cara e se diz ‘empresário’, se você quer chamar ele
de ‘mercador de carne’, sabe, então ele é mercador de carne. Os empre s ários
só se interessam por você se você puder lutar, sabe — é a mesma coisa
que qualquer outro trabalho. Em todos os empregos só se interessam por
você se você estiver disposto a ir trabalhar, se a gente não vai trabalhar não
se interessam mais pela gente. Então [mexe lentamente a cabeça] eu entendo
a minha posição, eu entendo muito bem, e entendo que se aparece uma
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 3 7
pessoa que vai servir de empresário, é o trabalho dele, e eles só estão interessados
em você se você puder lutar. Se quiser chamar isso de vender carne,
então tá, é isso que eles fazem. Mesmo assim resolvi entrar no jogo, mesmo
sabendo que eu ia ser a carne [risos]”.
Uma segunda força que promove a aquiescência prática dos lutadores
diante de arranjos vergonhosamente exploradores é o e s p ír it o
e m p re e n d e d o r que atravessa o ofício. Desde o momento em que colocam
o pé na academia, os “artistas machos” passam a ser alimentados com
uma ração ininterrupta de noções e narrativas nativas que ressaltam o
indivíduo desafiador e retratam o boxeador como um guerre i ro solitário,
um gladiador moderno que está lá para provar seu valor ao se atracar de
punhos cerrados com o seu próprio destino1 1. Esse vocabulário empre s arial
das motivações se enraíza na experiência ocupacional da a u t op rod ução
corporal: ao tre i n a r, o boxeador usa seu próprio corpo ao mesmo tempo
como matéria-prima e como ferramenta para remodelar esse mesmo
c o r p o de acordo com as exigências peculiares do ofício. Ele se engaja em
trabalhos corporais especializados que têm o objetivo de produzir um tipo
específico de capital corporal que pode ser vendido e valorizado no mercado
pugilístico (Wacquant 1995).
Mediante infindáveis sessões de “trabalho de estrada” [ro a dw o r k]
( c o rridas diárias de 5 a 10 quilômetros feitas durante as manhãs), “trabalho
de chão” [f l o o rw o r k ] (que consiste em “lutar com a sombra”, bater
em diversos tipos de sacos de pancada, pular corda e fazer exerc í c i o s
calistênicos) e “trabalho de ringue” [r i n gw o r k] (ensaio dos movimentos e
t reinamento de luta no ringue com um parc e i ro), o boxeador “desenvolve
seus poderes adormecidos e os compele a agir de acordo com sua direção”
(Marx 1956:148). Ao fazer isso, ele transforma seu organismo, apropria-
se de suas capacidades e produz literalmente um novo ser corpóre o
a partir do velho. E recebe um palco onde pode afirmar seu valor moral e
construir um self heróico e transcendente que lhe permite escapar do stat
u s de “não-pessoa” (Goffman 1959:151-152) que costuma ser o destino
de (sub)proletários como ele. Por fim, mas não com menor import â n c i a ,
as habilidades específicas que os boxeadores adquirem ao longo das atividades
relacionadas à sua ocupação são incorporadas ao seu org a n i s m o
e, desse modo, constituem sua propriedade pessoal inalienável. Os lutad
o res profissionais são a rt esãos do corpo (masculino e violento) que, tal
como seus contrapartes da revolução industrial, se vangloriam de “ter
um ofício” (“having a trade”) em vez de “estar em um ofício” (“being in
a trade”) (Hobsbawm 1984:262).
1 3 8 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
Os boxeadores apreciam estar “bem no lugar da produção”, sere m
“self-made men” no sentido literal de pro d u z i rem-se a si mesmos através
do trabalho corporal diário na academia e fora dela. Muitos deles inicialmente
buscam a profissão por causa de uma combinação de amor ao jogo
e desejo de escapar dos “trabalhos escravos” da manufatura decadente e
da nova economia de serviços, nos quais se é obrigado a “engraxar os
sapatos dos outros” e agüentar submissão pessoal, humilhação cultural e
p e rda de honra masculina para assegurar condições para um empre g o
durável — tudo isso para ganhar uma ninharia que não garante nem
segurança econômica, nem oportunidades de promoção (Bourgois 1995).
Eles consistentemente interpretam o boxe profissional como uma rota de
fuga diante do destino modal de “passar por vinte diferentes empre g o s ”
que não levam a lugar algum. Como observa Vinnie, um pugilista ítaloamericano
que relutantemente se tornou profissional depois que um negociante
local, amigo da família, se ofereceu para apoiá-lo em sua carreira:
“Vi n n i e: Se eu não tivesse encontrado o boxe, eu provavelmente ia estar nas
ruas, trabalhando como um cidadão qualquer, por um contracheque, tendo
que agüentar as ordens de alguém — cara, eu fico doente só de pensar!
Louie: É mesmo? Então o boxe é um jeito de escapar disso?
Vi n n i e: Com certeza, com certeza. É por isso que eu digo, aos rapazes que
não estão envolvidos com boxe ou com esporte ou coisa assim, os que vão à
escola: você não tem que fazer isso! [gesticulando animadamente] Seja seu
próprio empresário, seja seu próprio chefe, aí você não precisa ficar escutando
de ninguém, não precisa ficar agüentando merda de ninguém, você
consegue sua própria grana”.
A vigorosa afirmação de sua “capacidade de ação”* individual
encontra sua contraparte na paradoxal negação, ou desconsideração, pelo
l u t a d o r, da responsabilidade econômica dos empresários, de modo a desviar
a atenção dos arranjos impessoais e relações estruturadas que efetivamente
determinam a forma, a velocidade e o resultado das carre i r a s
de boxeadores (Wacquant 1998a).
Por fim, contando com a cumplicidade interessada de seus pare s ,
t re i n a d o res, amigos e torc e d o res, todo boxeador se apega à noção autojustificadora
de que ele será a e x c eção individual à regra coletiva: ele
será aquele que vai conseguir dar a volta por cima, ir contra todas as
* No original, agency entre aspas (N. do T.).
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 3 9
expectativas, e transgredir a lei universal da extorsão pugilística. Com
base apenas na sua dedicação, vontade férrea e constante vigilância, ele
vai conseguir “ganhar o seu” sem “se dar mal” nesse processo. Esta é a
posição defendida por Don, um antigo “contendor” que mais re c e n t emente
se tornou um valioso lutador de segundo escalão no circuito nacional
em virtude de suas sólidas habilidades no ringue e de sua pele branc
a1 2: “Eu mesmo, se eu estou me cuidando, não deixo ninguém se aproveitar
de mim [com firmeza]: não deixo”. Essa mesma determinação é
repetida por Roderick, um peso-leve negro que já havia sentido o “gosto
do sucesso” quando seu empresário o mandou para as academias de Las
Vegas para treinar com boxeadores de elite: “Para mim, eu concordo plenamente
[que os empresários exploram as pessoas]. (Mesmo assim você
resolveu entrar no jogo?) É, mas é o único jeito; eu posso lutar, sabe: a
d i f e rença é essa, eu posso lutar. Eu posso me agüentar sozinho. (Vo c ê
não acha que alguém vai te usar?) Só se eu deixar, se eu ficar atento, ficar
e s p e rt o, eu não vou me dar mal”. Um companheiro de academia concorda:
“O negócio é o seguinte: eu sei que não vai acontecer isso, saca, porque
eu sou uma pessoa que se eu vir que está acontecendo isso, eu vou
mandar você se foder”. Por sua vez, Martin, o peso-cruzador negro que
admite ser “carne” pronta para ser vendida, evoca a proteção especial
do céu: “Eu tenho o S a lv ad o r que olha por mim então eu não me pre o c upo
— eu sei que as pessoas tentam me usar mas o bom Deus não há de
deixar isso acontecer comigo”.
Em última instância, a responsabilidade pela exploração é jogada
totalmente nas costas do boxeador, que é convidado a assumir a patern idade
de seu eventual fracasso no campo pugilístico juntamente com a de
suas realizações. Se ele quiser se vangloriar dos seus atos de sucesso
pugilístico, deve estar pronto para assumir também a agonia do fracasso
p rofissional, da degradação econômica e da destruição corporal, como
afirma um jovem peso-médio negro que luta boxe de dia e trabalha como
segurança à noite:
“Eu acho que isso é verdade [que os empresários exploram as minorias
p o b res], alguns deles, sabe, não são todos, só alguns. Quer dizer, só vão
poder te usar enquanto você deixar. Uma pessoa só pode te sugar enquanto
você deixar. Se você sente que tem alguém te usando, acho que você deve
parar e ir falar com ele prá entender o que está acontecendo: você tem o
d i reito, né? Você tem que ter controle do seu contrato. Nunca deixar o
e m p resário ter controle sobre você [falando rapidamente] porque você que é
o lutador, cara, é você que está arriscando a vida, não ele.”
1 4 0 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
No fim das contas, o boxe não passa de um “negócio capitalista” como
qualquer outro e os empresários, como quaisquer bons empresários, estão
só fazendo o seu trabalho quando ganham dinheiro a partir da labuta e do
suor dos outros. Um policial porto-riquenho que concorreu duas vezes ao
título estadual dos pesos-leves costura o tema da inevitabilidade da exploração
com o da responsabilidade do lutador como operador independente:
“É, acho que é bem isso, eu sinto a mesma coisa, sabe, é o trabalho deles, é
assim que eles ganham a vida, tá me entendendo? A gente não pode culpar
eles, porque eles também têm que ganhar a vida, mas por outro lado a gente
pode culpar eles também, porque estão destruindo alguém, estão acabando
com algum garoto que podia ter um potencial muito bom. Só porque esse
g a roto não tem dinheiro por trás dele, ele vai ser usado como isca, e isso não
está certo, tá me entendendo? Mas se o garoto for esperto, ele não vai entrar
nessa, eu sei que comigo isso não vai acontecer, tá me entendendo, porq u e
eu não sou otário”.
Por fim, no caso daqueles que, tendo se dedicado durante anos a trabalhos
corporais intensivos dentro dessa economia específica, não possuem
outras qualificações nem alternativas a curto prazo para gerar a
renda necessária para cobrir suas despesas básicas — a não ser o não
menos perigoso comércio de mercadorias “quentes” e narcóticos — re s t a
a crua carência econômica. Essa é a situação de um peso-pesado afro -
americano que foi empregado repetidas vezes por seu treinador como
“oponente” em s h o w s televisionados, sem que tivesse virtualmente nenhuma
chance de vencer, e que prontamente admite estar sendo usado
por empresários em busca de seus próprios fins. Saber que os empre s ários
são exploradores não o leva a parar de lutar: “Sim. (Por que?) Porq u e
eu gosto. (Você não acha que talvez você possa estar sendo usado?) Não.
Um pouco, até certo ponto, sim. (E você não se preocupa com isso?) Me
preocupo sim, mas eu tenho que ganhar a vida, tenho que continuar”13.
Em seu conjunto, as crenças dóxicas inscritas profundamente nas
disposições corporais do lutador, a crença na naturalidade da exploração,
na “capacidade de ação” do empresariamento do corpo e na possibilidade
de casos individuais excepcionais, ajudam a produzir um e q u ív oc o
coletivo de re c o n h e c i m e n t o * que leva os boxeadores a se torn a rem cúmplices
de sua própria comercialização e a consentirem praticamente com
* No original, collective misrecognition (N. do T.).
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 4 1
a sua “degradação a uma mercadoria, e uma mercadoria bem miserável”
( M a rx 1964:120). Quanto à incomum i n t e ns id ad e da exploração nessa
economia, é uma função direta da distância social e etnorracial entre o
explorador e o explorado bem como da enorme disparidade entre os volumes
e tipos de capital que possuem: de um lado, lutadores que norm a lmente
quase nada têm além de seus organismos treinados e a coragem
moral necessária para valorizá-los em um ofício duro e arriscado; do
o u t ro, empresários que virtualmente monopolizam as competências e
bens necessários para levar adiante o negócio. A ausência quase total de
regulação por agências burocráticas do Estado, por sua vez, é expre s s ã o
do s t at u s m a rginal e maculado desse ofício no universo dos esportes profissionais
e do entretenimento popular, bem como a classe corre s p o n d e ntemente
baixa de seus praticantes e consumidores, como observa agudamente
meu colega de academia Smithie:
“ Veja bem, é uma profissão que se você tivesse g e nte com estudo, tivesse
d i p l om at a s, se tivesse gente de certa c u lt ur a, né, que entrasse no jogo e
virasse l u t ad o r, então eles iriam pedir isso [mais regulação]. Mas veja o tipo
de gente que você encontra nesse jogo, está de acordo com o tipo de re l ação
e o tipo de negócios que você encontra, né? Então uma coisa re f l e t e
s o b re a outra”.
Recebido em 13 de maio de 2000
Tradução: John Comerford
Loïc Wacquant é pesquisador do Centre de Sociologie Européenne do Collège
de France e professor de sociologia e pesquisador do Earl Wa rren Legal
Institute, University of Californ i a - B e r k e l e y. É autor de Les Prisons de la
M i s è r, de Punir os Pobres: O Novo Governo da Miséria nos Estados Unidos
e, com Pierre Bourdieu, de An Invitation to Reflexive Sociology.
1 4 2 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
N o t a s
* Este texto se baseia em uma discussão realizada no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, no dia 3
de maio de 2000, e faz uso, em parte, de um p a p e r mais longo com o título “The
Passion of the Pugilist: Desire and Domination in the Making of Prizefighters”
(“A Paixão do Pugilista: Desejo e Dominação na Construção dos Boxeadores Profissionais”),
apresentado como M o rr ison Library Inaugural Lecture, na Universidade
da Califórnia, Berkeley, no dia 25 de abril de 1995. Este trabalho se beneficiou
dos comentários e questões dos participantes do seminário sobre Cultura
Popular no Museu Nacional, bem como do agudo olhar editorial de Megan L.
Comfort.
1 Durante o trabalho de campo, realizado entre 1988 e 1991, aprendi a lutar
boxe (bem o suficiente para ser admitido no Chicago Golden Gloves e para boxear
re g u l a rmente com profissionais), freqüentei torneios amadores e profissionais em
vários locais do Meio-Oeste americano e em Atlantic City, observei e re l a c i o n e i -
me com tre i n a d o res e empresários em seu ambiente natural, e acompanhei os
meus amigos da academia em seu cotidiano. Neste artigo, lanço mão das 2.200
páginas de meu diário de campo, de minhas notas de campo, das histórias de vida
de meus companheiros do Stoneland Boys Club (nome fictício) e de entre v i s t a s
em profundidade com todos os cinqüenta boxeadores profissionais ativos no estado
americano de Illinois no verão de 1991.
2 Ver Wacquant (1998a) para uma análise detalhada da estrutura e do funcionamento
da economia do pugilismo como sistema de troca e de conversão
mútua entre capital corporal e capital econômico possibilitada por um equívoco
coletivo de reconhecimento [collective misrecognition].
3 “Eu sou uma puta que vende o sangue em vez da bunda. Mas isso faz parte
do esporte. Eu nunca ganhei muito dinheiro com a minha beleza, mas sempre
a p a rece alguém disposto a me pagar para levar porrada. E eu agüento muita porrada,
cara. É um dom da natureza. Esse granito dos meus ombros pode agüentar
muita pancada. Eles não me pagam para ser inteligente” (Randal “Tex” Cobb,
um peso-pesado branco, que trabalha como mecânico, citado por Hauser
1986:106). Do outro lado da fronteira de gênero, talvez a melhor analogia para os
b o x e a d o res sejam as mulheres que fazem p e rf o rm a nc e s de pornografia comerc i a l
(Stoller e Levine 1993 e Wacquant 1997), ainda que essa atividade seja moralmente
re p rovada até mesmo no meio bastante próximo das atrizes porn ô s ,
enquanto lutar boxe é uma atividade bastante valorizada nas regiões mais baixas
do espaço social, de onde vêm os boxeadores.
4 No jargão do boxe americano, “oponente” [o p p on e n t] é um lutador habilidoso,
porém limitado (ou que já está “descendo a ladeira”), que se dispõe a lutar
apenas por dinheiro contra lutadores claramente superiores. Normalmente, ele é
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 4 3
trazido por um empresário para se confrontar (o jargão diz: “para servir de comida
para”) com algum boxeador em ascensão, com o objetivo de melhorar o curr ículo
e promover a carreira deste. Shapiro (1988) retrata com sensibilidade esses
“oponentes”.
5 Essas organizações, muitas vezes chamadas com desprezo por pessoas
ligadas ao boxe como os “bandidos do alfabeto” [a l p h abet bandits], são agências
autonomeadas que trabalham mancomunadas com empresários para publicar os
r a nk i n g s e coletar enormes “taxas de autorização” em troca de incluir no campeonato
lutas que são vendidas às redes de televisão. As três maiores são a Wo r l d
Boxing Association (criada em 1962), “uma pequena irmandade de latino-americanos”
que “não passa de uma piada corrupta”; o World Boxing Council (1963),
que trabalha como “feudo pessoal” de José Suleiman, um libanês educado nos
Estados Unidos e empresário industrial no México, que trabalha em conjunto com
a empresa Don King Productions (Hauser 1986:95, 98); e a International Boxing
Federation (1983), que recentemente foi colocada sob intervenção da Justiça
depois que seus principais dirigentes foram acusados por pro m o t o res federais de
praticar diversos atos de corrupção (inclusive a venda secreta de suas classificações
para alguns empresários). Mais recentemente, essas organizações têm
e n f rentado a competição de uma gama de pequenas “federações mundiais” autoproclamadas,
tais como a IBC, a WBO, a IBO etc.
6 A ética profissional do “sacrifício” e o regime de treinamento dos lutadores
profissionais são descritos em detalhes em ”Pugs at Work” (Wacquant 1995) e
em “Os Três Corpos do Lutador Profissional” (Wacquant 1998b).
7 Como observa Orlando Patterson (1982:388), a imagem dos ossos sendo
bicados e descarnados também é um tema freqüente na linguagem dos escravos
do mundo inteiro: “Você me comeu quando eu era carne, agora você deve desc
a rnar meus ossos”. O sentimento de estar sendo “comido vivo” também é uma
f o rma de consciência comum entre trabalhadores manuais que vivem em condições
de superexploração em circunstâncias fisicamente degradantes. Exemplos
famosos são os casos dos mineiros de estanho das terras altas da Bolívia descritos
por June Nash (1979) e os trabalhadores das usinas de açúcar no Brasil analisados
no clássico estudo de José Sérgio Leite Lopes, O Vapor do Diabo ( 1 9 7 8 ). A
figura vampiresca do sugamento de sangue aparece na vívida descrição dos trabalhadores
imigrantes argelinos na França por Abdelmalek Sayad (1999).
8 Tomo emprestada essa caracterização da “prática da integridade” elaborada
por T. Dunbar Moodie e Vivienne Ndatsche (1994:2) para o caso dos trabal
h a d o res africanos negros migrantes que labutam nas minas de ouro na África
do Sul.
1 4 4 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
9 Essa aceitação dóxica da exploração como uma constante da vida é levada
ao extremo por um peso-leve desempregado vindo de um subúrbio negro e
p o b re de Chicago, que vê na atual desigualdade, com um fervor quase re l i g i o s o ,
um inequívoco sinal do sucesso futuro: “Claro, porque eu vou ganhar meu dinheiro,
sabe, quando for minha vez de ganhar dinheiro eu vou ganhar. Tudo que vem
muito fácil não vale a pena, então eu sei que tenho que lutar, tenho que l u t a rl
u t a r- l u t a r, tenho que ir em frente sem nada, mas eu e s c ol h i essa vida e s e i q u e
vai ser duro”.
10 Ao final dessa entrevista, feita em um restaurante perto da academia em
uma noite de verão, esse boxeador-malandro se ofereceu para me levar até o local
onde ele promovia jogos de azar, e mais tarde tentou insistentemente me vender
várias mercadorias roubadas, inclusive um revólver usado (por 150 dólares) e uma
submetralhadora nova (por 300 dólares).
11 As (auto)biografias dos campeões, de Papa Jack Johnson e Jack Dempsey
até Joe Louis, Muhammad Ali e Oscar de La Hoya, são repetições quase idênticas
desse tema da singularidade super-humana e do sucesso individual diante de dificuldades
formidáveis. Nessas histórias de vida empacotadas, os boxeadores aparecem
em sua essência como os Horatio Algers do corpo masculino [Horatio Alger,
nascido em 1834 e falecido em 1899, autor americano de estórias infantis em que
os heróis levavam vidas exemplares, lutavam contra a pobreza e a adversidade e
acabavam ganhando riquezas e honrarias].
12 Os lutadores brancos tornaram-se mais valorizados economicamente conf
o rme se foram tornando mais escassos, especialmente nas divisões de pesos mais
pesados para as quais as remunerações são mais altas.
13 A respeito das motivações de “vagabundos” (“b u m s”) e “latas de tomate”
( “t o m ato cans”) para continuar lutando, apesar da ausência de perspectiva de
vitória e apesar da completa falta de habilidade, ver Wacquant (1998a:12-13).
P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES 1 4 5
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1 4 6 P U TAS, ESCRAVOS E GARANHÕES
R e s u m o
Este artigo se baseia em trabalho de
campo em uma academia de boxe localizada
no gueto negro de Chicago. Busca
explicar como os lutadores pro f i s s i onais
percebem e expressam o fato de
s e rem mercadorias vivas, e como se reconciliam
praticamente com uma impiedosa
exploração, de maneira a cons eguir
manter um senso de integridade
pessoal e de finalidade moral. A experiência
que o boxeador tem da exploração
do seu corpo é expressa através de
três idiomas aparentados, o da pro s t ituição,
o da escravidão e o da criação
animal. Esses três tropos enunciam a
c o m e rcialização imoral de corpos. Mas
essa consciência é neutralizada pela
c rença na normalidade da exploração,
na “capacidade de ação” do empre s ariamento
dos corpos e na possibilidade
de casos individuais excepcionais. Essa
c rença, inscrita nas disposições corporais
do lutador, ajuda a produzir o equívoco
coletivo de reconhecimento através
do qual os boxeadores se tornam c ú mplices
de sua própria comerc i a l i z a ç ão. 

terça-feira, 4 de outubro de 2011

SAURA LOPES CLEMENTINO E A HISTÓRIA DO CANGAÇO

No início de 2009, na busca das memórias de N. Sra. das Dores (SE), tive a oportunidade de conhecer a senhora Isaura Lopes Clementino. Estava em busca de memórias do cangaço, capítulo da história nacional e local que ecoa até hoje, mesmo decorridos 73 anos da morte de seu maior ícone (28 de julho de 1938), Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938) - o Lampião, e do início do declínio do movimento.
No auge dos seus quase 100 anos de lucidez e demonstrando forte ligação com o tema, dona Isaura nos relatou, em várias conversas desde então, fatos que elucidam algumas das mais importantes dúvidas que existiam na história do cangaço em terras dorenses, em especial no que diz respeito à relação mantida entre o “rei do cangaço” e o Coronel Vicente Ferreira de Figueiredo Porto (1876-1949), o Figueiredo da Tabúa, do qual o pai da nossa personagem (João Clementino) foi homem da mais alta confiança, confiança atestada pelo saudoso cirurgião dentista Eduardo de Andrade Porto (neto do coronel) em entrevista ao Projeto Memórias no ano de 2006.
Esta pernambucana de Triunfo, que desde os 15 anos reside no município de Dores, nos relatou que a vinda da família Clementino a Sergipe está intimamente relacionada à Lampião, já que o mesmo determinou a João, seu genitor, que desse cabo da vida do vizinho, Pedro Quelé, que havia lhe dado “aborrecimento”. Diante da negativa de João Clementino, justificada pela boa relação que mantinha com o vizinho de propriedade e compadre, o mesmo passou a ser ameaçado de morte por Virgulino, o já temido e afamado Lampião. A decisão de sair de Triunfo para evitar que o cangaceiro desse fim a sua família, a qual Clementino resistiu mas fora aconselhado por um irmão que dava coito a Lampião, veio após o recebimento de uma carta assinada pelo próprio cangaceiro, que em forma de ameaça dava o ultimato: “corre corre minha burrinha, tu corre mais do que eu, vai dizer a João Clementino que o Pedro Quelé morreu”.
Após curto período no estado de Alagoas a família de dona Isaura desembarcou no Cajueiro, N. Sra. das Dores (SE), onde seu pai e seu irmão (Pedro Clementino) se tornaram empregados do Coronel Figueiredo. Foi nessa propriedade que, tempos depois, os Clementinos se veriam novamente envolvidos na história do cangaço.
No fim dos anos 1930, pouco antes da chacina de Angicos, a fazenda Cajueiro foi invadida por um grupo de cangaceiros liderado por José Ribeiro Filho (1913-1981), o Zé Sereno, e desejosos de extorquir dinheiro do Coronel. Diante da negativa, houve serrado tiroteio, que só não resultou na morte de Figueiredo graças à ajuda e coragem de Pedro Clementino.
Continua na próxima edição...

Por João Paulo Araújo de Carvalho (historiador, mestre em História, professor e colaborador do Projeto Memórias) contato: joaopaulohistoria@gmail.com


* Publicado na Revista Perfil. Julho de 2011. e no blog http://www.cangacoemfoco.jex.com.br/historia+do+cangaco/isaura+lopes+clementino+e+a+historia+do+cangaco+parte+1+de+pernambuco+a+sergipe
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